segunda-feira, 15 de outubro de 2018

STCN - Resenha do artigo "Espiritualidade: Cristã ou Líquida?"

Mais um trabalho entregue no seminário! Dentro da grade curricular, a Capelania se tornou disciplina obrigatória, visto que durante os próximos três anos há possibilidade de eu ficar afastado da minha igreja local aumenta consideravelmente, pois em breve estarei fazendo estágio em outra igreja (se bem que os meus pastores são professores no seminário). Caberá ao Deão, na medida do possível, acompanhar a mim e os demais seminaristas durante os próximos semestres, o que torna crucial nossa participação nas atividades (e a tendência de todo estudante é só querer fazer o que for obrigatório).


A UIECB deu um grande passo em prol do crescimento teológico das igrejas e seminários da denominação: em agosto de 2018 o Departamento de Educação Teológica da União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil lançou a primeira edição da Revista Teológica, com 7 artigos produzidos por pastores da nossa denominação.

Cada aluno do seminário recebeu uma revista, e foi incumbido de escolher dois artigos sobre os quais deveria produzir resenhas. Escolhi os artigos 2 e 7 da revista. O primeiro traz o tema "Espiritualidade: Cristã ou Líquida?", escrito pelo Reverendo Márcio Leal, o qual, após a leitura, produzi a resenha abaixo:



ESPIRITUALIDADE: CRISTÃ OU LÍQUIDA

Leal, Márcio de Carvalho. Revista Teológica: Departamento de Educação Teológica da União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil. UIECB-DET. 1. Ed. Rio de Janeiro: Contextualizar, 2018.

O artigo escrito pelo Reverendo Márcio Leal aborda a espiritualidade do ser humano, fazendo um paralelo entre princípios bíblicos e o conceito de espiritualidade líquida, demonstrando, portanto, os efeitos da modernidade na vida do cristão. Cumpre salientar que o conceito de modernidade é espelhado em Zygmunt Bauman, para referir-se à pós-modernidade, portanto, o artigo aborda a espiritualidade do homem no período pós-moderno.

O autor inicia analisando o conceito de espiritualidade no curso da história da igreja, tanto do ponto de vista católico quanto o protestante, bem como a decomposição do termo, que deixa de caracterizar uma atividade proveniente da graça do Espírito Santo para caracterizar aquilo que não é material, dando origem a um dualismo através do qual infere-se que para viver espiritualmente é necessário distanciar-se do mundo.

Neste ponto, o autor afirma que segundo o Novo Testamento, o ser humano espiritual “é animado, transformado e potencializado pelo Espírito de Deus através de uma comunicação caritativa e oblativa”, o que altera o paradigma vital da vida do cristão, dando origem à uma nova prática a partir dos ensinos do Senhor Jesus Cristo. Ao falar da comunicação caritativa e oblativa, o autor refere-se ao exemplo de Cristo de caridade com todos os homens e entrega própria ao Pai, como oferta agradável.

A fim de trazer uma definição de espiritualidade cristã, o autor analisa o que é considerado um ser humano “espiritual”, usando o termo grego pneumatikós, que está presente em 1 Coríntios 3:1 e diz respeito à pertencer, ser motivado ou controlado pelo Espírito Santo. Essa operação do Espírito no homem, de acordo com o autor, se dá mediante a lei do Espírito, que dá a vida em Jesus Cristo, nos termos de Romanos 8:2. Essa mudança da lei do pecado para a lei de Deus no homem acarreta uma transformação integral, através da qual a essência do homem é mudada, e desta forma, a sua existência material também. A definição dada pelo autor é a de que “podemos definir a espiritualidade cristã como aquela que se refere à busca por uma experiência cristã autêntica e satisfatória, baseada na fé, nos valores e princípios cristãos” com impulso inicial dado pelo Espírito Santo e tendo como paradigma o Senhor Jesus Cristo.

Partindo desta premissa, o padrão de espiritualidade a ser vivido pelo cristão é a busca incessante de ser um imitador de Cristo. Desta forma, o autor constrói sua tese de que a espiritualidade cristã deve tomar forma concreta na história, e não ser apenas uma experiência interior ou de mera reflexão, trazendo transformações não apenas morais, como também sociais. Logo, a espiritualidade nestes termos diz respeito a mudança do ser pelo Espírito, para um agente de mudanças e transformações no mundo a sua volta. A doutrina encontra amparo em Bonhoeffer, que, de acordo com o autor, afirma que a espiritualidade ensinada por Cristo englobava não apenas a vida de oração constante, mas também a assistência social aos famintos, a cura dos enfermos e expulsão de demônios. A vida de Cristo é o exemplo perfeito de amor ao próximo.

Cabe uma ressalva à escolha do texto bíblico utilizado para afirmar que devemos assumir uma vida de seguimento a Cristo para ter uma espiritualidade genuinamente cristã. O versículo escolhido pelo autor foi Gálatas 2:19, e diz respeito à fala de Paulo acerca da justificação pela fé em Cristo, em um momento de oposição à postura possivelmente judaizante do apóstolo Pedro perante aqueles que vieram de Tiago, ao levantar-se da mesa dos gentios, abrindo margem para a interpretação dos demais de que a justificação implicava na observância da Lei. Paulo, portanto, afirma que a Lei aponta para Cristo, o qual fora crucificado; e que tendo seus pecados levados na cruz sobre Cristo, está morto para a prática da Lei, visto que não mais imputa a sua justiça por ela, mas reveste-se da graça e justiça de Cristo na cruz.

Também merece ressalva a tradução transcrita para o versículo que, conforme nota de rodapé da página 21, diz respeito à Bíblia em Linguagem Contemporânea. Enquanto o mesmo versículo na tradução de João Ferreira de Almeida traz a ideia de ter morrido na cruz com Cristo, ou seja, a morte do velho homem com o nascimento do novo homem, a tradução contemporânea traz a ideia de identificação total, o que não exatamente infere um novo nascimento, e pode dizer respeito simplesmente a identificar-se ideologicamente, por exemplo. Poder-se-ia criar um paralelo entre “estar crucificado com Cristo” e “identificar-se totalmente com Ele” semelhante ao encontrado em João 21:15-23 (agapao/phileo). A primeira parte do versículo também merece cuidado, visto que a tradução apresentada traz uma afirmação de Paulo quanto a não obter êxito em ter tentado agradar a Deus pela observância da lei quando não é possível inferir tal informação do versículo, visto que o objetivo do apóstolo é afirmar que morreu para a lei por descobrir a justificação em Cristo.

Após formular o conceito de espiritualidade cristã que norteia todo o artigo, o autor passa a abordar o conceito de espiritualidade líquida inerente à sociedade contemporânea observada por Zygmunt Bauman. Tal espiritualidade tem como marca o antropocentrismo, hedonismo, relativismo e relações com um deus chamado consumo.

Trata-se de uma análise brilhante acerca do quadro de boa parte das igrejas em funcionamento, com destaque àquelas de doutrina neopentecostal. Igrejas contaminadas pelo mundo, onde a cruz se tornou um mero acessório para um misticismo cujo único objetivo é satisfazer o desejo do homem de uma experiência estática e/ou sensitiva. Igrejas que reforçam a vontade do homem de sentir-se especial e diferente.

O autor aponta que esta espiritualidade líquida faz o homem perder o foco de que o Espírito Santo nos comunica Cristo, Sua relação trinitária e Sua doação e comunhão. Embora haja controvérsias em afirmar que somos a mão de Deus na história, sendo mais correto afirmar que Deus age apesar de nós; o autor é contumaz ao demonstrar que assim como o nosso Deus ama e vive em comunhão, nós somos chamados a amar ao próximo e viver em comunhão uns com os outros, cuidar do pobre, da viúva e do estrangeiro, ser sal e luz do mundo. Neste ponto, não basta não ser violento. O autor defende a necessidade de solidarizar-se com o outro a ponto de buscar meios para que os demais também não sejam.

Portanto, o autor vincula espiritualidade à busca por justiça social. Esta é de fato uma marca da obra de Deus no homem, visto que desde a Velha Aliança o cuidado aos necessitados fazia parte da lei de Deus, fosse pelo mandamento de amar ao próximo como a si mesmo, ou nas prescrições de cuidados com as viúvas, órfãos e estrangeiros, os hipossuficientes e excluídos da sociedade.

Conclui-se que a espiritualidade cristã traz consigo o amor ao próximo e a transformação de vida que leva o homem a tirar o foco de si e colocá-lo em Deus. Ao fazê-lo, o amor de Cristo nos constrange e nos estimula a amar ao próximo, transformando-se em agente transformador do mundo a nossa volta. Portanto, espiritualidade caminha junto com justiça social, pois desperta no filho de Deus a piedade e compaixão. Embora a crítica do autor à espiritualidade líquida seja focada no comprometimento do amor ao próximo, esta é antes de qualquer coisa um comprometimento da relação do cristão com Deus, visto que mesmo que por ignorância o homem passa a adorar a si mesmo.

Pedro Silva Drumond é acadêmico do primeiro período do Curso de Teologia do Seminário Teológico Congregacional de Niterói.

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