quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O que dizer sobre... Crime e Castigo

Finalmente concluí a leitura do livro Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski!!! Tentei ler a primeira vez aos 17 anos de idade, e parei porque os passeios em meio aos delírios e loucura do protagonista logo nos primeiros capítulos quase me levaram a loucura também. Respirei algum tempo (mais exatamente 6 anos) e recomecei a leitura.

Uma cena digna do filme "Abraham Lincoln - O Caçador de Vampiros".

Li uma tradução da Editora Martin Claret que havia aqui em casa, independentemente das discussões envolvendo a editora, e até onde eu sei esta obra não está elencada entre as obras citadas nas ações judiciais e discussões. É uma versão de bolso (embora eu questione bastante qual bolso eles usaram como critério, pois nada no meu armário comporta o livro) com uma capa bem desenhada, que por algum motivo me fez lembrar do poster de Homem de Ferro 3.

Há semelhanças sim!

O livro aborda o crime cometido por Raskolnikóv (segundo a Nota do Tradutor, um nome em cuja etimologia encontra-se a palavra raskol, cisão, simbolizando o caráter cindido e atormentado do personagem). E aqui começa uma questão muito interessante, que seria qualificar o crime cometido.

Quando lemos o crime cometido com olhos da lei, estamos diante da prática de um latrocínio (Art. 157, §3º do Código Penal). Dostoiévski nos apresenta um assassinato de uma velha usurária, por um estudante, com o objetivo de roubar os objetos empenhados e o dinheiro da mesma. Entretanto, mais a frente descobrimos que este não foi o real motivo do crime, e o homicida queria apenas comprovar uma tese formulada por ele em um artigo que escrevera na universidade (discutiremos isso mais tarde).

Os verdadeiros crimes de Raskolnikóv foram um Homicício Duplamente Qualificado (por traição e motivo fútil) com Causa de Aumento de Pena por tratar-se de pessoa idosa, referente à velha usurária; e um Homicídio Qualificado por assegurar a impunidade do homicídio anterior, no que diz respeito à Lasivieta. Muda alguma coisa ser latrocínio ou homicídio? Sim!!! É a diferença entre ter um ladrão disposto a qualquer coisa e um assassino: um tem objetivo de roubar a qualquer custo, o outro só quer matar mesmo. Sinceramente não conheço a legislação penal aplicável em São Petersburgo ao tempo do livro, mas foi bastante interessante analisar com as lentes da legislação penal brasileira (o que inclusive ajuda a compreender o personagem um tanto mais).

Os cenários são bem descritos (do jeitinho que só Dostoiévski faz), de forma que você consegue se sentir abafado pelos ares de uma São Petersburgo suja e quente, e até mesmo sentir-se enlouquecer de claustrofobia no pequeno apartamento de Raskolnikóv. As narrativas do atropelamento de Marmeladov e da loucura de Ekaterina por pouco fizeram-me chorar.

As capas da Martin Claret trabalham com a desnecessária possibilidade de você não compreender a narrativa do autor.
A riqueza da narrativa de Dostoiévski não se restringe à descrição dos cenários, pois não perde qualidade quando diz respeito à construção dos fatos e personagens. Por exemplo, é absurdo como é possível sentir os calafrios de Arkádi pelo vento frio da tempestade, ou mesmo o seu terror no pesadelo da menina promíscua ou no dos ratos que subiam em seu corpo.Não tem jeito de não acabar imerso nos delírios e no ego de Raskolnikóv e gozá-los como se fossem seus, o que se torna contraditório, na medida em que é possível saudar o brilhantismo de Porfíri em cada investida realizada contra o homicida. Os crimes no começo do livro passam como um filme na cabeça do leitor!

Raskolnikóv foi muito bem construído, de forma que eu tentei ler um TCC de psicologia que abordava a temática do livro pra tentar compreendê-lo (não entendi nada do texto e desisti).Um personagem que oscila entre uma grande culpa (que nem ele mesmo sabe explicar) e um exacerbado amor próprio, e que delira a todo momento. Há de se considerar, ainda, a doença nervosa que praticamente colocou sobre si as suspeitas da autoria do crime. Não obstante todo o cuidado para não ser visto, e desconsiderando o amadorismo no crime, foi um desmaio dentro do comissariado de polícia que chamou a atenção para si.

O personagem é afligido no livro por momentos de extrema lucidez alternados por delírios, nos quais ele sequer se recorda de como chegou à determinados lugares. A expectativa de ser descoberto a qualquer momento leva Raskolnikóv à perambular pela cidade escondendo os vestígios do crime, tomado por um vigor violento, mas, logo que exposto ao ambiente externo do seu apartamento, sua energia se esvai com tamanha intensidade que chega mesmo a dormir na relva.

A escolha do título assenta muito bem com o dilema vivido pelo assassino, visto que, ainda que faltassem provas da autoria do crime, Raskolnikóv expõem-se de tal maneira, que em pouco tempo Porfíri já não duvidava dele. Situações como confessar o crime à um policial dentro de uma casa de chá, os embates do Porfíri, visitar o local do crime após uma informação dada pelo próprio comissário de polícia, e lá questionar acerca do sangue no chão (o stress o levou a tal delírio). Nestes momentos, Raskolnikóv goza pela ausência de indícios de autoria que o vinculem ao crime praticado, e até mesmo desafia os comissários a pegá-lo. Raskolnikóv triunfa sua capacidade de dissimular culpa, inocência, doença e até mesmo loucura.

Em contrapartida, há momentos no qual o personagem se torna taciturno e sente o peso de uma culpa que ele mesmo não consegue explicar. Ainda que alegue que seu grande descontentamento é ter hesitado na prática do crime, de forma que não poderia ser considerado um homem extraordinário, Raskolnikóv evidencia uma culpa que, não assumida pela sua razão (amante de si mesma) é carregada por um senso de moralidade contra o qual luta a todo instante. Podemos usar como exemplo que, após socorrer Marmeladov e ter o sangue deste na sua roupa e ser informado disto, toma um ar mais sério e declara que realmente ele está todo coberto de sangue, o que é uma clara reflexão sobre os assassinatos. Ou quando declara que não foi a velha que ele matou, e sim a si mesmo.

Raskolnikóv inconscientemente sente necessidade de ser remido pelo seu crime (visto que conscientemente ele considera que não pode ser considerado criminoso por ser extraordinário), e, em momentos como estes, dá todo o dinheiro que tem à uma viúva ou tenta impedir uma mulher embriagada de ser molestada por um homem que a seguia. Raskolnikóv tenta, a todo momento provar que não estava errado, ao tentar fazer do mundo um lugar melhor.

Agora o crime!!! Não, Raskolnikóv não sentiu fome e roubou para comer! Ele matou porque se considerava superior! Como assim? Na universidade Raskolnikóv escreveu um artigo no qual apresentava uma tese na qual afirmava que há homens ordinários e extraordinários, e que estes últimos estão acima da lei, reformulando-as ou ignorando-as para mudar o mundo. Usa como um dos exemplos Napoleão e todas as mortes vinculadas ao mesmo, que, ao invés de lançar sobre ele o estigma de assassino, são celebradas junto com suas vitórias civis.

Ocorre que Raskolnikóv considera-se um desses homens, e a fim de comprovar sua tese, planeja assassinar a velha usurária e usar o seu dinheiro para custear a sua ascensão, não por necessidade financeira, mas por recusar-se ser considerado um dos homens comuns, aos quais todas as leis são imputadas. Raskolnikóv mesmo admite isto, comparando-se com Razumikhim, um exemplo de esforço e juízo (menos quando está bêbado). A própria situação financeira de Raskolnikóv é questionável, visto que o mesmo poderia dar aulas para custear seus estudos, optando, em sentido contrário por ficar deitado em seu divã durante dias, apenas pensando e sem vontade alguma de trabalhar. Somos apresentados à um Raskolnikóv ainda mais doentio: diferente de um homem que matou por dinheiro, um homem que matou por matar. Não há como negar este fato, na medida em que durante toda a narrativa não há um momento no qual o assassino pense em usar o fruto do roubo (não por medo ser pego, ele simplesmente não pensa no que roubou), não tendo sequer abrido as bolsas para saber o que tinha dentro.

Raskolnikóv sendo um dos homens extraordinários do mundo.
Os personagens secundários e suas histórias não deixam a desejar. Em alguns momentos, os dramas secundários chegam a ser mais intensos que o principal! Histórias bem construídas e vinculadas. Personagens com os mais variados perfis. Meu destaque vai para Porfíri, com jogos psicológicos e artimanhas dignas do "L" e Kira de Death Note! Aliás, acredito que Tsugumi Ohba tenha realmente lido Crime e Castigo... É muita coincidência mais alguém criar um estudante homicida e genial (sim, não nego que Raskolnikóv é de certa forma um gênio) e um policial igualmente genial, que já tem o assassino antes da evidência.

Porfíri e Raskolnikóv.


No fim, o personagem só encontra a paz de espírito que tanto ansiava no amor de Sônia, filha de Marmeladov, que o seguiu até a Sibéria, local no qual cumpria a pena pelo crime. Aliás, foi por esta mulher que ele se entregara à polícia, visto, não obstante Porfíri descobri-lo, houve um terceiro que por motivos de autopenitência confessou o crime no momento em que Raskolnikóv seria preso (após uma maravilhosa tortura psicológica). De fato, é compreensível que a única coisa forte o suficiente para transpor o amor próprio (que no caso de Raskolnikóv é o que impede sua reabilitação e superação da culpa) é o amor a outra pessoa. Ir para a Sibéria punir seu corpo pelo crime cometido não surtiu nenhum efeito até o amor por Sônia rasgar sua alma, momento no qual ele encontra redenção.

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